sábado, abril 26, 2008

Quando a água invade o sótão

Seu nome era Roberto Rosário e naquela manhã não havia comprado o jornal. Não era nem por motivo nenhum, só havia se esquecido de passar na banca de João Antenor quando saiu de casa e, a caminho da padaria, quando se lembrou, já estava demasiado longe e não julgou correto comprar o diário em outra banca. Depois de tantos anos cumprindo a rotina jornaleira com Seu Antenor, porque haveria de? Isso lá seria acertado? E, pensando bem, as notícias não lhe interessavam assim tanto. 

A padaria não tinha boa aparência. As paredes, onde não estavam pichadas, estavam descascando, o telhado era como se fosse um só ninho - de toda a sorte de bichos -, a opacidade das coisas era tanta que a impressão que se tinha é de que nunca nada poderia limpar aquele lugar, e que letreiro? Rosário sentou-se ao balcão, como de costume. Por que continuava a ir ali? Local de pessoas decadentes, onde os bêbados acordam do sonho e as putas desincham os olhos, onde o cheiro de pães e café não consegue apagar o da vida rança. Certamente poderia tomar seu café da manhã em casa. Não tinha nenhum tipo de laço com aquele lugar; aliás, não tinha nenhum tipo de laço com coisa alguma. Ficando em casa evitaria o incômodo de se encontrar com certos tipos e estaria a salvo de bisbilhoteiros que porventura pudessem querer lhe saber da vida. Estava decidido: a partir de amanhã tomaria o desjejum em casa. Teria que comprar pães, manteiga e frios, além de pó de café e uma pequena cafeteira. Ficaria caro? Talvez ficasse. Um sujeito que acaba de ser demitido não podia se dar ao luxo de ter essas pequenas quaisquer-coisas. Mas aquilo nem luxo era, não era nada, se fizesse as contas saberia que, cancelando suas visitas diárias à padaria, economizaria muito mais e a economia logo somaria mais do que o valor da cafeteira e dos pães e frios – não gastaria dinheiro com isso todos os dias. Uma cafeteira era coisa tão comum, todo mundo acabava tendo, coisa de rico é que não era.

Quando se perde um emprego de tantos anos é tão difícil, de repente nada está bom, tudo parece fora de lugar e assume um aspecto novo. É como se os dias se apresentassem como eles são, pura e simplesmente; como se muitas coisas acontecessem ao mesmo tempo, mas nenhuma delas nos dissesse respeito. A padaria começava a apinhar. Estariam os outros olhando para ele? Comentando, em segredo, sua malograda condição? Ora, que comentassem. Não era vergonha nenhuma estar sem emprego, era coisa que podia suceder a qualquer um, tinha tanta gente no mundo...

Iria pedir o quê? Um café pequeno e um pão quente na chapa. O balconista estava virado de costas, terminava de lavar e enxugar alguma louça. Esperaria ele terminar sua tarefa e, quando se virasse, pediria. Ao seu lado estava sentado o Zé Bigode – era assim que Rosário o chamava em sua mente, porque não sabia seu nome. Ele tomava café da manhã ali todos os dias também, sempre com uma camisa de flanela, os botões sofrendo para segurar sua barriga estufada, parecia até um balão. Qual era a cor daquele bigode? Variava entre o castanho e o grisalho, mas para isso não havia regra: dia estava mais castanho, lhe dando um aspecto arbóreo; dia estava mais grisalho, como um chumaço de pêlos de gato. Em geral tinha a cor da água suja de louça suja, seu volumoso bigode. Rosário achava que a razão de sua existência era esconder sua boca e dentes feios.

Talvez não devesse pedir nada e ir embora. Não teria trabalho e poderia agüentar até a hora do almoço sem nada no estômago. Mas seria correto sair dali agora? Decerto chamaria atenção – lembrou-se do velho louco que às vezes aparecia ali e sentava-se nas mesas, conversava com as pessoas e depois saía, desconversando que tinha compromissos do outro lado da cidade para os quais estava atrasado e que, portanto, o cafezinho com bolo de fubá ficaria para outro dia. Mas que gostava de todos e que aquilo era um triste acaso, não poder ficar para o bolo e café. Mas ele, Rosário, louco não era. Tinha crédito ali, poderia sair sem que ninguém suspeitasse de coisa alguma, era um serviço de última hora que havia surgido do qual não pôde se lembrar com a devida antecedência. Voltaria no dia seguinte para compensar, ele riria. Mas sabia que não voltaria porque ia tomar o café em casa. Se saísse economizaria alguns trocados que poderia usar para jogar na loteria – e se ganhasse? O balconista se virou.

- Um café pequeno e um pão na chapa.

Quem disse aquilo? Rosário, o homem rotineiro, aquele que trabalha no... Mas não ele. Ele ainda não tinha consciência de sua situação. Consciência até que tinha, o que não tinha era inconsciência, não pôde assim de supetão dizer que não comeria nada, e também não tinha culpa se custava tanto se acostumar à vida de desempregado. Era isso, teria que gastar o dinheiro da loteria. Mas poderia jogar dali duas ou três semanas, bastava juntar o dinheiro que economizaria deixando de desjejuar fora. Quem sabe não ganhava? Aí poderia tomar cervejas, comer aves finas, namorar de novo. Por ora, vida murcha, vida vadia, de centavos.

O barulho à sua volta aumentara muito desde que chegara. A padaria estava cheia, todas as cadeiras tinham uma bunda e todos falavam muito alto. Rosário era o único que não falava nada; melhor assim. Zé Bigode estava comendo alguma coisa, o que era? Seria muita indiscrição olhar para descobrir, essas curiosidades não valem nunca a pena serem mortas. Talvez fosse algo caro - mas e Zé Bigode lá ganhava grandes? Um velho desse tipo não devia de ser útil para muitas coisas, podia já ser aposentado, até. Que injustiça seria darem emprego a um velhote estufado como aquele havendo tanta coisa melhor pela Terra. E por que comia assim com as duas mãos, tão deselegante? Rosário não teria aquele bigode.

- Aí, amigo.

Aquele era o balconista, lhe trazia o café e o pão. Nunca deveria ter pedido coisa alguma, se arrependimento matasse a fome...

O cheiro do café era bom, já estava adoçado, mas por que o gosto amargo? Colocou duas colheres de açúcar e tornou a provar, continuava amargo. Mas isso, Rosário sabia, não era problema da padaria. Não ousou mais pensar em qual era problema. Enquanto comia era bom que estivesse despreocupado, afinal a vida era longa e havia ainda muito tempo para lidar com os problemas, nada exige pressa no desjejum. Mas muito incomodava ver alguém comendo daquele jeito como o Zé Bigode. Até parecia bicho, ou então criança malcriada que ri quando mija no muro do vizinho. Mas aquilo devia de ser alguma coisa muito gostosa. Que era? - ó - mas Zé Bigode já havia comido tudo. Tanto melhor, Rosário poderia comer quieto.

Agora que a xícara e o pratinho estavam todos esvaziados de conteúdo iria pagar a conta, usaria o dinheiro da loteria. Seria o jeito, todo homem tem que saber estabelecer suas prioridades, e saber também que quando não se tem dinheiro não se pode ter tudo. Quando ganhasse na loteria seria outra história, não contaria mais os centavos do bolso escuro e vazio dentro do qual vivia, poderia até passear na praia. O oceano, mundão sem fim! Lá, onde a brisa era suave, a vida seria boa. Mas ganhar na loteria não era coisa fácil, mesmo Rosário já havia tentado mais de dezenas de vezes e nada de ganhar. Mas se não tentasse, como poderia? Depressa e sem pagar a conta saiu.

sábado, abril 12, 2008

Nostalgia sobre uma colcha de retalhos

Ciranda cirandinha
vamos todos roer a roupa do rei de roma
vamos dar a meia volta, volver!