quinta-feira, outubro 16, 2008

Qual o defeito de todas as coisas?, me perguntei.

Você, respond'eu.

quinta-feira, junho 19, 2008

Mas que nada

Não vale nada a carne carcomida
se não consigo fazer da ferida
botão de flor ou sílaba medida

De nada vale a rima bem metrada
se eu sempre cago na saída
se eu sempre cago na entrada

sábado, abril 26, 2008

Quando a água invade o sótão

Seu nome era Roberto Rosário e naquela manhã não havia comprado o jornal. Não era nem por motivo nenhum, só havia se esquecido de passar na banca de João Antenor quando saiu de casa e, a caminho da padaria, quando se lembrou, já estava demasiado longe e não julgou correto comprar o diário em outra banca. Depois de tantos anos cumprindo a rotina jornaleira com Seu Antenor, porque haveria de? Isso lá seria acertado? E, pensando bem, as notícias não lhe interessavam assim tanto. 

A padaria não tinha boa aparência. As paredes, onde não estavam pichadas, estavam descascando, o telhado era como se fosse um só ninho - de toda a sorte de bichos -, a opacidade das coisas era tanta que a impressão que se tinha é de que nunca nada poderia limpar aquele lugar, e que letreiro? Rosário sentou-se ao balcão, como de costume. Por que continuava a ir ali? Local de pessoas decadentes, onde os bêbados acordam do sonho e as putas desincham os olhos, onde o cheiro de pães e café não consegue apagar o da vida rança. Certamente poderia tomar seu café da manhã em casa. Não tinha nenhum tipo de laço com aquele lugar; aliás, não tinha nenhum tipo de laço com coisa alguma. Ficando em casa evitaria o incômodo de se encontrar com certos tipos e estaria a salvo de bisbilhoteiros que porventura pudessem querer lhe saber da vida. Estava decidido: a partir de amanhã tomaria o desjejum em casa. Teria que comprar pães, manteiga e frios, além de pó de café e uma pequena cafeteira. Ficaria caro? Talvez ficasse. Um sujeito que acaba de ser demitido não podia se dar ao luxo de ter essas pequenas quaisquer-coisas. Mas aquilo nem luxo era, não era nada, se fizesse as contas saberia que, cancelando suas visitas diárias à padaria, economizaria muito mais e a economia logo somaria mais do que o valor da cafeteira e dos pães e frios – não gastaria dinheiro com isso todos os dias. Uma cafeteira era coisa tão comum, todo mundo acabava tendo, coisa de rico é que não era.

Quando se perde um emprego de tantos anos é tão difícil, de repente nada está bom, tudo parece fora de lugar e assume um aspecto novo. É como se os dias se apresentassem como eles são, pura e simplesmente; como se muitas coisas acontecessem ao mesmo tempo, mas nenhuma delas nos dissesse respeito. A padaria começava a apinhar. Estariam os outros olhando para ele? Comentando, em segredo, sua malograda condição? Ora, que comentassem. Não era vergonha nenhuma estar sem emprego, era coisa que podia suceder a qualquer um, tinha tanta gente no mundo...

Iria pedir o quê? Um café pequeno e um pão quente na chapa. O balconista estava virado de costas, terminava de lavar e enxugar alguma louça. Esperaria ele terminar sua tarefa e, quando se virasse, pediria. Ao seu lado estava sentado o Zé Bigode – era assim que Rosário o chamava em sua mente, porque não sabia seu nome. Ele tomava café da manhã ali todos os dias também, sempre com uma camisa de flanela, os botões sofrendo para segurar sua barriga estufada, parecia até um balão. Qual era a cor daquele bigode? Variava entre o castanho e o grisalho, mas para isso não havia regra: dia estava mais castanho, lhe dando um aspecto arbóreo; dia estava mais grisalho, como um chumaço de pêlos de gato. Em geral tinha a cor da água suja de louça suja, seu volumoso bigode. Rosário achava que a razão de sua existência era esconder sua boca e dentes feios.

Talvez não devesse pedir nada e ir embora. Não teria trabalho e poderia agüentar até a hora do almoço sem nada no estômago. Mas seria correto sair dali agora? Decerto chamaria atenção – lembrou-se do velho louco que às vezes aparecia ali e sentava-se nas mesas, conversava com as pessoas e depois saía, desconversando que tinha compromissos do outro lado da cidade para os quais estava atrasado e que, portanto, o cafezinho com bolo de fubá ficaria para outro dia. Mas que gostava de todos e que aquilo era um triste acaso, não poder ficar para o bolo e café. Mas ele, Rosário, louco não era. Tinha crédito ali, poderia sair sem que ninguém suspeitasse de coisa alguma, era um serviço de última hora que havia surgido do qual não pôde se lembrar com a devida antecedência. Voltaria no dia seguinte para compensar, ele riria. Mas sabia que não voltaria porque ia tomar o café em casa. Se saísse economizaria alguns trocados que poderia usar para jogar na loteria – e se ganhasse? O balconista se virou.

- Um café pequeno e um pão na chapa.

Quem disse aquilo? Rosário, o homem rotineiro, aquele que trabalha no... Mas não ele. Ele ainda não tinha consciência de sua situação. Consciência até que tinha, o que não tinha era inconsciência, não pôde assim de supetão dizer que não comeria nada, e também não tinha culpa se custava tanto se acostumar à vida de desempregado. Era isso, teria que gastar o dinheiro da loteria. Mas poderia jogar dali duas ou três semanas, bastava juntar o dinheiro que economizaria deixando de desjejuar fora. Quem sabe não ganhava? Aí poderia tomar cervejas, comer aves finas, namorar de novo. Por ora, vida murcha, vida vadia, de centavos.

O barulho à sua volta aumentara muito desde que chegara. A padaria estava cheia, todas as cadeiras tinham uma bunda e todos falavam muito alto. Rosário era o único que não falava nada; melhor assim. Zé Bigode estava comendo alguma coisa, o que era? Seria muita indiscrição olhar para descobrir, essas curiosidades não valem nunca a pena serem mortas. Talvez fosse algo caro - mas e Zé Bigode lá ganhava grandes? Um velho desse tipo não devia de ser útil para muitas coisas, podia já ser aposentado, até. Que injustiça seria darem emprego a um velhote estufado como aquele havendo tanta coisa melhor pela Terra. E por que comia assim com as duas mãos, tão deselegante? Rosário não teria aquele bigode.

- Aí, amigo.

Aquele era o balconista, lhe trazia o café e o pão. Nunca deveria ter pedido coisa alguma, se arrependimento matasse a fome...

O cheiro do café era bom, já estava adoçado, mas por que o gosto amargo? Colocou duas colheres de açúcar e tornou a provar, continuava amargo. Mas isso, Rosário sabia, não era problema da padaria. Não ousou mais pensar em qual era problema. Enquanto comia era bom que estivesse despreocupado, afinal a vida era longa e havia ainda muito tempo para lidar com os problemas, nada exige pressa no desjejum. Mas muito incomodava ver alguém comendo daquele jeito como o Zé Bigode. Até parecia bicho, ou então criança malcriada que ri quando mija no muro do vizinho. Mas aquilo devia de ser alguma coisa muito gostosa. Que era? - ó - mas Zé Bigode já havia comido tudo. Tanto melhor, Rosário poderia comer quieto.

Agora que a xícara e o pratinho estavam todos esvaziados de conteúdo iria pagar a conta, usaria o dinheiro da loteria. Seria o jeito, todo homem tem que saber estabelecer suas prioridades, e saber também que quando não se tem dinheiro não se pode ter tudo. Quando ganhasse na loteria seria outra história, não contaria mais os centavos do bolso escuro e vazio dentro do qual vivia, poderia até passear na praia. O oceano, mundão sem fim! Lá, onde a brisa era suave, a vida seria boa. Mas ganhar na loteria não era coisa fácil, mesmo Rosário já havia tentado mais de dezenas de vezes e nada de ganhar. Mas se não tentasse, como poderia? Depressa e sem pagar a conta saiu.

sábado, abril 12, 2008

Nostalgia sobre uma colcha de retalhos

Ciranda cirandinha
vamos todos roer a roupa do rei de roma
vamos dar a meia volta, volver!

sábado, fevereiro 16, 2008

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver

Dia primeiro de abril e a mentira era eu mesmo. Tinha virado homem, desses que se submetem à constituição. Meu pai entrou no quarto enquanto eu me ocupava sentando em frente à janela, vendo a rua nascer e morrer.

- Ê, moleque. Parece que ontem eu te vi nascer.

Trazia uma caixa nas mãos. Disse que era meu presente de aniversário.

- Você já é homem feito, já pode beber. Abre.

A caixa escondia uma garrafa grande, uma de nãoseiquantos litros.

- A melhor garrafa de desgosto que se pode comprar. Você pode abrir ela hoje à noite no jantar, a gente bebe de tira-gosto.

- Acho melhor não.

- Os anos passam, mas não o egoísmo, hein? Você quem sabe. Mas vê se bebe com moderação, não quero filho viciado.

Saiu do quarto do jeito que entrou – pela porta. Olhei a garrafa e guardei pra depois.

***

Trinta e sete anos depois, no enterro do mesmo.

- Você ficou sabendo do que o menino morreu, Glória?

- Parece que foi de desgosto. Deve ter visto a mulher com outro, no mínimo.

O defunto levantou-se da cova e gritou:

- Foi de cirrose, sua vaca obsoleta.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

No continente tudo é bonito, lá tem um monte de pernas grandes e brancas, e as duas mais bonitas do mundo. Lá tem gelo, montanha, paisagem, curva, museu, chocolate, motoneta, passeio, baci. Lá as crianças vêem os homens nevar pelos olhos.
O vento assopra-lhe os cabelos, posso vê-los esvoaçar. Debaixo deles, um aperto - porque não se pode apertar.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Xeque-mate

Os sapatos rotos, a boca crispada, os olhos caídos, os ombros deitados
O leite na mesa, o copo na pia, a mente subindo, o corpo no meio

Mulher não mora, filho não mora, gato não mora, a vida demora
Quarto escuro, dentro da cuca, o resto de carne a mente devora

Domingo à tarde, gole na pança, perna trançada, olhos em fuga
O leite caído, a alma voada, o cano fumando, a bala na nuca

terça-feira, novembro 27, 2007

[excerto]

O protoplasma de K'halil encheu o quarto, os dois olhos flutuando perdidos nas órbitas iam procurando lugar onde descansar. A cabeça cansada se diluiu no ar e K'halil virou uma projeção holográfica. "Os circuitos internos de qualquer sistema eletroquímico é facilmente desintregado através da meditação. Neste caso específico, as ondas sonoras não exercem influência alguma, como vocês podem observar neste quadro barroco", ele explicava em sua palestra.

segunda-feira, novembro 26, 2007

sexta-feira, novembro 23, 2007

Etnocídio

Em algum lugar por volta de quê, 2005?

Etnocídio

Pelo clima demais ártico,
Num jardim que nem meu é,
Tenho árvores de plástico.

Já nem sei como é meu pé,
E não sei se sou suástico,
Ou a borra do café!

sábado, novembro 17, 2007

Sabor

Bebo a minha urina

é, sim, a melhor vacina

pro amargo do amor

terça-feira, novembro 13, 2007

Trinta e 22%

As manhãs terão mudado,
levado com elas a alegria torporosa que eu sentia
quando soltávamos poderes pelos corredores
e brincávamos de bola
As manhãs, elas terão mudado,
os dias passados parecerão grandes
mesmo que longe na linha do tempo
porque nós, nós éramos grandes
e me lembrarei de nosso tamanho
quando, no futuro, vestir um pensamento
e ele não servir mais.

terça-feira, novembro 06, 2007

... hum.

o cocô é uma especiaria norte-americana
que, uau, é uma delícia.

as lágrimas vão embora jogar pôker e fumar charuto
o corpo fica seco e a tripa é uma mangueira
venus in furs com botas brilhantes me enche de peles a cara
o surfe nessa área é uma aventura até o sem fim

o baile do filho europeu encheu os cabelos dos moços de
brilhantina barata, e as moças compraram seus velhos
vestidos rosa e azul-suave. A dança é uma curva de joelhos
martelados pelos dedos do baixista. O maxixe aqui é proibido
é pra macacos sem chapéu que têm joelhos nas costelas
sai quicando até onde chega a nota do sax

não é mais época de pistola, é época de sexo. Eles dizem
que não, mas sua dança demonstra o contrário, também os topetes
no fim do baile o salão está vazio, todos estão fazendo sexo
porque sexo no salão ainda é proibido..

bigode tá totalmente por fora, coroa. Agora existem os
vibradores. Se a sua senhora diz que não usa, quer dizer
que já cansou de tanto usar.

a igreja não distribui camisinhas, apenas nomes. Taxam
qualquer um filho desta explosão demográfica com explicações
não tão científicas. Eu não sou Claudio Luiz Cecim Abraão Filho.
Jesus opera por nomes que ele inventa? Por que não nós?
cada um com seu deus e profeta.

o retrato dos anos 50 muda a cada ano,

terça-feira, outubro 30, 2007

Estávamos todos na casa de Marilyn

Isso é alguma coisa que eu comecei e nunca terminei, tem vários meses.

Estávamos todos na casa de Marilyn

Estávamos todos na casa de Marilyn, com aquela vodka em cima da mesa e aquele papo maluco no ar.

- É no cio que uma cadela se completa. Quero dizer, qual a função natural de uma cadela que nunca fica no cio? Isso é mania urbana, nada natural. Ainda que ela se torne um animal nojento de se carregar – porque na verdade ela não pediria pra ser carregada se não tivesse sido acostumada desse modo – é assim que deve ser.

- Eles mandam essas pizzas que não são cortáveis e temos essas facas que não cortam. Isso tudo pra que peçamos pizzas grandes e as comamos individualmente. Jesus fez bem em partir o pão com as mãos, entende?

- Vocês viram as plantações de pombos lá, aquilo me deixa maluco. Plantam os pombos naquela terra que vive caindo e, mais tarde, nas praças, você vê o milho todo voando. E parte dele caindo sobre as nossas cabeças, é impressionante.

Comíamos pizza com os pratos em nossos colos, sentados ao redor de uma mesa retangular sobre um teto imenso. Três pizzas grandes e oito bocas grandes; era o suficiente. Bill estava comendo na ponta da mesa, mas ainda não havia pegado pizza.

- Cara, o que é isso que você tá comendo?

A calça de Bill estava aberta e um pouco abaixada, com seu pênis semi-ereto saltando pra fora da cueca. Bill cortou um pedaço da cabeça e comeu. Depois outro pedaço. O sangue saía com vontade, um vermelho-sangue que parecia encher Bill de prazer – sua cara se contorcia em movimentos desordenados enquanto mastigava sua própria carne, gotas de sangue pingando do queixo.

- Os sentidos envolvidos neste processo são: ursão, pato, alface, alagar e a algodão, já que você está ouvindo essa explicação. Mas, menos mal Bill, achei que estivesse comendo os carrapatos-estrela desta tarde.

domingo, outubro 28, 2007

Soneto dissonante

Esse não é velho ainda, tem uma semana.

Soneto dissonante

Os garotos na sacada se drogam
chegam quietos, saem todos pulando
maconha e ácido de vez em quando
os garotos na sacada se drogam

chegam quietos, saem todos pulando
maconha e ácido de vez em quando
os garotos na sacada se drogam

saem felizes mas voltam chorando
maconha e ácido entram pulando
os garotos se drogam de vez, quando
saem felizes e voltam chorando

os garotos na sacada se drogam
sempre felizes e sempre chorando
o inferno dos garotos dissonantes