sábado, fevereiro 16, 2008

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver

Dia primeiro de abril e a mentira era eu mesmo. Tinha virado homem, desses que se submetem à constituição. Meu pai entrou no quarto enquanto eu me ocupava sentando em frente à janela, vendo a rua nascer e morrer.

- Ê, moleque. Parece que ontem eu te vi nascer.

Trazia uma caixa nas mãos. Disse que era meu presente de aniversário.

- Você já é homem feito, já pode beber. Abre.

A caixa escondia uma garrafa grande, uma de nãoseiquantos litros.

- A melhor garrafa de desgosto que se pode comprar. Você pode abrir ela hoje à noite no jantar, a gente bebe de tira-gosto.

- Acho melhor não.

- Os anos passam, mas não o egoísmo, hein? Você quem sabe. Mas vê se bebe com moderação, não quero filho viciado.

Saiu do quarto do jeito que entrou – pela porta. Olhei a garrafa e guardei pra depois.

***

Trinta e sete anos depois, no enterro do mesmo.

- Você ficou sabendo do que o menino morreu, Glória?

- Parece que foi de desgosto. Deve ter visto a mulher com outro, no mínimo.

O defunto levantou-se da cova e gritou:

- Foi de cirrose, sua vaca obsoleta.

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